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SURINAME

PARAMARIBO

Passado o choque cultural, com o fervor do sol do Trópico de Câncer perpetuando nosso encontro, decidimos andar um pouco mais pelas ilhas caribenhas em uma embarcação partindo da capital do Suriname. Chegamos na imigração do aeroporto. Exigem que entreguemos todo o dinheiro, uma situação anormal. Meu austríaco entrega a nota de cem dólares que tem no bolso e diz que é tudo o que tem em papel moeda. No hotel conversamos com o gerente que explica sobre o atual sistema político, um golpe de estado declarou a ditadura, também informa que necessitamos de ajuda para sair do país, tendo o Brasil como o melhor destino. Amedrontados espiamos guerrilheiros armados em todos os cantos. Ho hotel, o jornal sobre a mesa da recepção retrata cenas de assassinatos. Como prisioneira em uma cela observo cada centímetro do quarto, girando na cama, alternando as posições, com o mofo nas paredes envelhecidas embolando o estômago. Oscilamos entre dormir e acordar, aguardando angustiados a chegada do holandês, nativo, que nos conduzirá até a saída do país. Muitas vezes a noite parece chegar no meio da tarde, gostaria de falar com meu irmão ou minha prima, que sempre me acalmam, entretanto estamos proibidos de telefonar. Meu coração vacila e dispara com os ruídos mais inocentes: o som metálico do arrastar do carrinho, a campainha do elevador e o automóvel que freia, até as badaladas do sino da matriz causam impacto. À noite acordamos com um estrondo, corremos para a janela e visualizamos guerrilheiros na calçada em frente ao hotel, enquanto pessoas desesperadas gritam pelos corredores. Alguém bate na porta com força. Pulamos para o lado de fora do peitoril, ficando em pé no largo resguardo que se estende ao longo da fachada. Encostados na espessa parede da antiga fachada, aturdidos, testemunhamos a rua vazia. No céu, algumas nuvens pequenas passam como crianças fugindo para casa. Gritos de uma mulher, acompanhados de rajadas, ocupam o ambiente. Um estouro nos assusta. Escutamos barulhos como se malas estivessem sendo jogadas no chão, procuram por algo, homens falam um idioma que não entendo. 

— Morrer para renascer — proclama a inspiração, no exato momento em que um deles se aproxima da janela.

 

Nos movimentamos mais para o lado. O cano da metralhadora quebra o vidro apontando para fora. Minhas pernas desmaiam e meu austríaco ampara, ficamos por um fio. Logo um silêncio abraça o momento. Em seguida guerrilheiros embarcam na traseira de um caminhão que some ao longo da rua levando prisioneiros. O vazio fora nos perturba. Um mistério nos vigia. Retornamos detidamente para o quarto bagunçado. Volta a lembrança doída que vivi quando criança no quarto da mamãe, e que jamais esqueci. Ao cruzar a porta vizinha, uma mulher deitada, com as pernas ensanguentadas, me apavora, são muitas as pessoas feridas. Uma sirene anuncia a chegada da ambulância. Nessa noite não dormimos, esperando pelo resgate. No carro, ainda assustados, o holandês dá instruções sobre como agir para não sermos reconhecidos no aeroporto. Com roupa simples e óculos escuros, disfarcando meu temor, calcorreio ao lado do meu austríaco que camufla o cabelo loiro debaixo de um boné. Estrangeiros estão sendo presos ao tentar sair do país. Em pé, encostados na parede mal pintada de cinza, descascada, como se estivéssemos no corredor da morte, presenciamos as negociações. Clandestinos, seguimos até o avião, choro sem conseguir levantar a cabeça até a hora do pouso. Chego no Brasil como uma ave marinha arrastada pelo vento, com dez horas ainda nos separando do voo para a Europa.

Do meu romance ficção:

LACUNA

Texto retirado das páginas 80 à 82.

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